"e sempre, e tanto.."

sexta-feira, 24 de dezembro de 2004

Uma poesia de Pablo Neruda

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada, e tiritam, azuis os astros, ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta,
Posso escrever os versos mais tristes esta noite,
Eu a amei, e às vezes ela também me amou
Em noites como esta eu a tive entre meus braços
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito
Ela me amou, e às vezes eu também a amava
Como não ter amado seus grandes olhos fixos?
Posso escrever os versos mais tristes esta noite,
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi,
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como o pasto no orvalho
Que importa que meu amor não pudesse guardá-la,
A noite está estrelada e ela não está comigo,
Isso é tudo.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2004

O aprendiz de poesia - Vinicius de Moraes

Eu havia sempre laborado na arte da poesia, desde os mais verdes anos. Às vezes, em meio aos brinquedos com os irmãos, na Ilha do Governador, fugia e ia me ocultar no quarto, a folha de papel diante de mim.
Era tão estranho aquilo! Eu de nada sabia ainda, senão que tinha nove anos e Cocotá era o meu mundo, com sua praia de lodo, seu cajueiro e seus guaiamuns. Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. Passavam-me os mais doces pensamentos, a imagem de minha mãe cantando, o rosto de Cacilda, minha namorada, da Escola Afrânio Peixoto, o beijo que Branca me dera – menina danada! – em plena Igreja São João Batista, quando as cabeças dos fiéis se haviam mansamente curvado para a bênção.
Mas de alguma coisa carecia, que me arrastava logo a antologias (muito obrigado, Fausto Barreto; muito obrigado, Carlos de Laet!) ante as quais morria de inveja. Ah, escrever um soneto como o "Anoitecer", de Raimundo Correia! Minha maior tentação era, no entanto, meu próprio pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta inédito, cujos manuscritos folheava deslumbrado, os mesmos que Bilac lera e cuja publicação aconselhara.
Lembro que havia entre eles um soneto que levava meu nome, feito quando eu ainda no ventre materno. Cada vez que o lia, as lágrimas corriam-me livremente – e quantas não enxuguei sobre o papel amarelado para que não borrassem a linha antiga... Partia, ato contínuo, para a folha branca que me esperava, virgem, a procurar um tema, uma frase, uma palavra que me desse para abrir as portas daquela cidade cobiçada, cujos rumores chegavam-me maravilhosamente acústicos.
Pus-me a imitar. Primeiro meu pai, mais à mão, menos preocupado com a glória literária, a que não dava grande crédito. Um dia, como um ladrão, levei comigo, enfiada por dentro da camisa de banho, uma longa pastoral em decassílabos, que fui mostrar a Célia, minha garota da Ilha, uma menina grande e mais velha, que se entretinha de mim.
– Que beleza! – disse-me ela pondo as mãos nas minhas. – Você quer dar ele para mim?
Covarde, dei. Hoje a pastoral de meu pai anda por aí, não sei onde, talvez na gaveta de uma cômoda no Encantado, onde morava quando vinha ao Rio; talvez em Miami, Acapulco ou Pago-Pago, para onde a tenha levado sua imensa tontice.

*

Muito plagiei, a princípio. Primeiro timidamente, depois como um possesso. Castro Alves, companheiro de noitadas de meu tio-avô Mello Moraes Filho, emprestou-me sua revolta condoreira. Olavo Bilac cedeu-me o diamante com que cortava os duros cristais de sua poesia. Guilherme de Almeida presenteou-me com seu geraldysmo, sua reticência ilustre, seu sorriso imóvel e seus punhos de renda. Menotti deu-me seu lorgnon, seus crachás, seu jucamulatismo. Descia de Antero a Júlio Dantas, perpetrando ceias, desvendando seios, ai de mim. Abria a antologia à toa e esperava. Casemiro? Casemiro! E assim se foi povoando de negros caracteres impecáveis um grande livro de capa preta, rubricado "Prefeitura do Distrito Federal", sobre que, tenho a impressão, um funcionário qualquer, meu parente, havia feito mão baixa. Mas que importava? Era um livro belo, um caderno de perfeito almaço, da grossura da minha ambição de criar poesia, vasto bastante para o menino que queria voar com asas roubadas, essas que tão cuidadosamente punha nas omoplatas para o exercício noturno dentro de seu quarto dentro da Ilha dentro da baía dentro da cidade dentro do país dentro do mar dentro do mundo.
Um dia conheci um poeta como mandam as regras, com livro publicado e tudo o mais. Chamava-se João Lyra Filho, era moço nortista, apaixonado, e recitava Augusto dos Anjos por trás de uma cadeira. Augusto dos Anjos! Como me chocava aquela ousadia de palavras, a misturar a miséria ao sublime, o esterco à estrela, a podridão do túmulo à beleza da vida! Preferia Adelmar, para quem, naquele tempo, voltavam-se os olhos fiéis de João Lyra Filho como os do sacristão para o padre.
Certa vez, depois de uma noite de angústia, resolvi mostrar-lhe meus versos. Reunira-os sob o nome de "Foederis arca". Mas o poeta não gostou. Disse-me de modo brando que desistisse daquilo. Falou-me da predestinação poética, que eu não tinha. Meu negócio devia ser outro. Faltava-me aquele imponderável que os amantes do belo representam esfregando sutilmente a polpa do polegar contra a dos outros dedos, mas não como para indicar o vil metal: mais devagar, como a destilar a própria substância imanente da arte.
O poetinha aprendiz desistiu?
Coisíssima nenhuma! Prossegui firme, inabalável, entre alexandrinos, decassílabos e redondilhas, a perpetrar odes, sonetos, elegias, éclogas, cromos e acrósticos que dava fielmente às namoradas que fui semeando, da Gávea a Sabará.
Era o martírio da poesia, em todo o meu desvario.

*

Uma noite – eu tinha 17 anos – Otávio de Faria e eu fomos tocando a pé da Galeria Cruzeiro até a Gávea, onde ficava minha casa, na rua Lopes Quintas. Não era infreqüente fazermos isso, à base da conversa. Era um hábito da amizade entre o calouro e o veterano da Faculdade de Direito do Catete, aquele passeio noturno povoado das sombras de Nietzsche e da pantomima de Chaplin. Lembro-me que à meia-noite, bem alto, na estrada de Orion, brilhava uma lua como nunca vi mais cheia, a cabeleira solta, os seios nus, o olhar de louca a me varar o peito de súplicas e doestos.
Era tal o mistério dessa noite que agora mesmo, escrevendo na minha sala noturna, sinto os cabelos se me içarem de leve, como se fosse sentir novamente sobre eles a mão macia da lua cheia.
Deixei Octavio de Faria no seu bonde de volta e subi Lopes Quintas, rumo a casa. O sossego era perfeito, total o sono do mundo. Só às vezes, subitamente, dos espaços descia um braço de vento que varria as folhas secas da rua e empinava papéis velhos como hipocampos. Transpus, ansiado, a distância familiar que me levava para alguma coisa que sentia vir mas não sabia o que era. Em casa, galguei rápido as escadas para o meu quarto no primeiro andar, e fui sentar-me ofegante à escrivaninha antiga, a mesma que tenho hoje, a mesma que suportou na infância o peso da minha ambição de ser poeta. A janela estava aberta, e em sua moldura a lua viera se postar, os olhos cravados em mim.
Não sei como foi, mas sei que foi diferente de tudo o que sentia antes. Meus ouvidos, como conchas, pareciam recolher os ruídos mais longínquos do mar que estilhaçava em mim. Ouvi o sopro da noite, o cair das folhas, o germinar das plantas que boliam fora, na mata próxima ao Corcovado, e ali perto, no jardim. Pombas vazaram do meu coração, deixando-me dentro, a se debater, a grande ave inimiga que me feria com suas asas querendo sair também, fugir, voar para longe. Senti-me sem peso, sem dimensão, sem matéria. Meu ser volatilizou-se para a lua, transformado ele próprio em substância lunar. E comecei a escrever como nunca dantes, liberto de métrica e rima, algo que era eu mas que era também diferente de mim; algo que eu tinha e de que não participava, como um fogo-fátuo a crepitar da minha carne em agonia.

Linha por linha, como psicografado, o poema – o meu primeiro poema – começou a brotar de mim.

O ar está cheio de murmúrios misteriosos...

*

Há algum tempo atrás terminei os trabalhos de correção de uma coletânea de meus poemas, a sair proximamente. Lembrei-me do meu primeiro poema, do primeiro poema em que me vi criando poesia, transformando a natureza, sendo a voz que existia em mim e não era eu. Estudei longamente a possibilidade de colocá-lo na seleção, mas não houve jeito. Era ruim demais. Mas, curioso! senti a forma como a querer, em vão, segredar-me imponderáveis.
Tive saudades do tempo em que a poesia para mim era isso: a noite, com suas vozes, a lua com seus véus, o silêncio noturno da terra a rolar no infinito. Tive saudades de Júlio Dantas, Adelmar Tavares, João Lyra Filho. De repente, a poesia fez-se tão exigente, o poeta fez-se tão lúcido...
Por que tiveste que passar, poesia inocente, poesia ruim, que eu fazia com os olhos nos olhos da lua? Por que morreste e deixaste o poeta calmo, firme, sóbrio dentro da noite sem mistério?


sábado, 30 de outubro de 2004

Vinicius - Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


é... sempre vinicius...

terça-feira, 7 de setembro de 2004

Canção - Cecilia Meireles

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos
para o meu sonho naufragar


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas

segunda-feira, 19 de julho de 2004

Soneto de Fidelidade - Vinícius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo e sempre e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
quem sabe a morte, angústia de quem vive
quem sabe a solidão, fim de quem ama

eu possa lhe dizer do amor (que tive):
que não seja imortal, posto que é chama
mas que seja infinito enquanto dure

sexta-feira, 16 de julho de 2004

Soneto do Corifeu - Vinícius de Moraes

São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

Palavra - Pablo Neruda

... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.

Passagem da noite - Drummond

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.
(...)

quinta-feira, 15 de julho de 2004

Hoje - Thayse Madella

Hoje, é só mais um dia, apenas um advérbio de tempo, nada além disso. Então qual a sua relevância? Por que todos esses sentimentos? Meu dia começa as sete, é sempre assim. Mas hoje foi diferente. Um café amargo e uma torrada, estou atrasada. Pouco importa, afinal, é hoje. Nada está certo, mas ninguém acha o erro. Ainda é cedo, mas estou atrasada. A cama desarrumada, o pijama no chão do quarto, não tenho tempo, organizo quando voltar.
A rua ainda deserta, o carro na garagem, leio o jornal mais tarde. As árvores à frente balançam com o vento da madrugada fria. Um turbilhão de pensamentos invade minha mente. Ainda não sei o que fazer. Até ontem, esperava por esse dia como se fosse o mais importante de toda a minha existência, no entanto, agora, queria não estar vivendo esse momento. A lembrança do passado, agora no presente momento, todas as alegrias, mas também o final sofrido. Final!? Não foi um final, talvez agora termine. Não deve acabar assim, depois de tanto tempo. Pode não ser um fim, pode ser um começo, ou melhor, recomeço.
Preciso me acalmar, tenho que dirigir. Liguei o carro, mas não consigo tirá-lo da garagem. Preciso me acalmar. Minhas mãos tremem, todo o meu corpo treme. Um sonho, uma realidade, talvez ainda, apenas um sonho. A distância por tanto tempo esteve entre nós, agora tão perto, parece maior. Preciso me acalmar. O caminho é curto, ao mesmo tempo interminável. A estrada ainda solitária. A lembrança dele em minha mente. E se ele mudou? Ou se eu mudei? Talvez não sejamos os mesmos. Cinco anos é muito tempo. Não vejo nada na minha frente, nem meu futuro.
Tínhamos só dezesseis anos. Éramos jovens. Esses pensamentos em minha mente. Meu coração pulsa forte. Estou suando. Está frio. Ainda sinto o calor de seus lábios. E a neblina cada vez mais alta. Dirijo com toda a velocidade que posso. Preciso vê-lo novamente. Um ano juntos. Separação. O medo invade meu corpo. Apenas um telefonema, apenas por trinta segundos escutei sua voz. E hoje, o reencontro tão desejado. Suas fotos nunca saíram do porta-retrato. Seu rosto nunca saiu da minha cabeça. Essas imagens me perseguem.
O baile, a praia, o cinema, cada momento passa como se fosse o filme do nosso amor. Como se fossem os únicos momentos de felicidade que já tive. Ele nunca me escreveu. A mudança de sua família mudou também minha vida. Agora dirijo em direção ao meu futuro. Se eu possuir um. Minhas mãos estão geladas. Preciso me acalmar. A neblina aumenta. Meu coração acelera cada vez mais.
Algo está errado. Nada vejo. Apenas um barulho. Mal consigo fazer a curva. Não! Um caminhão em minha direção. Não consigo desviar. Preciso chegar ao aeroporto. Ele me espera. Um som ensurdecedor. Logo após, vidros quebrados. Sirenes. Pessoas estão em torno do carro, olhando, assustados. A escuridão.
Naquele dia o quarto não foi arrumado, o jornal não foi lido e ele... Ele a esperou.

Azul bebê - Deh Salves

Ela entrou na sala, uma camisa dele, azul bebê, pouco abotoada, segurando uma xícara de café entre as mãos; ele estava sentado em frente ao computador. De pés descalços, cabelos ainda levemente molhados, ela caminhou até ele, e ficou atrás da cadeira, os olhos amendoados atentos à tela, que reluzia na sala escura. O café estava quente e cheiroso; cheiro de café na sala, cheiro de shampoo nela, cheiro de colônia masculina nele. O teclado fazia música sob os dedos finos dele; dedos finos dele no teclado, dedos brancos dela na xícara, dedos de um entrelaçados nos dedos do outro. A tela do computador brilhava apática; apática a luz da tela, mágicos os olhos dela, apaixonados os olhos dele. O tapete da sala estava macio; macio o tapete bordô com bege, mais macia a pele dela, mais suave o toque dele. A janela deixava entrar a brisa fresca; fresca a brisa da noite de outono, quente o hálito dele, incendiante o beijo dela.
Sobre o sofá a camisa dele, azul bebê, desabotoada, e a xícara de café sobre o vidro da mesinha de centro. Atento, ele caminhou até ela, atrás da cadeira, tirou-lhe os pés descalços do chão, e os cabelos, ainda levemente molhados, reluziram à luz dos olhos dele, na sala escura. Nele, quente e cheiroso, cheiro de colônia masculina, que se misturava aos cheiro de shampoo, nela; cheiro de café na sala. Sob o comando da música, que entrelaçava a xícara, o teclado, os dedos de um e de outro, os dedos finos dele faziam nos dedos dela teclado brando. O computador de tela apática, tela de luz apática junto da mágica dos olhos dele na paixão dos olhos dela. No tapete bordô-macio com bege, o toque mais suave dela, na pele dele, o tapete mais macio. Brisa da quente noite de outono a entrar a janela, o beijo dele incendiante, o hálito dela, brisa.
Amêndoas musicais, dedos que reluzem ao cheiro bordô da janela, café macio que se entrelaça fino à luz, teclado begemente apaixonado pela noite de tapete masculino, mágica música dos dedos de shampoo nos beijos descalços do incêndio molhado.
Inexplicáveis, inesquecíveis...