"e sempre, e tanto.."

segunda-feira, 19 de julho de 2004

Soneto de Fidelidade - Vinícius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo e sempre e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
quem sabe a morte, angústia de quem vive
quem sabe a solidão, fim de quem ama

eu possa lhe dizer do amor (que tive):
que não seja imortal, posto que é chama
mas que seja infinito enquanto dure

sexta-feira, 16 de julho de 2004

Soneto do Corifeu - Vinícius de Moraes

São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

Palavra - Pablo Neruda

... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.

Passagem da noite - Drummond

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.
(...)

quinta-feira, 15 de julho de 2004

Hoje - Thayse Madella

Hoje, é só mais um dia, apenas um advérbio de tempo, nada além disso. Então qual a sua relevância? Por que todos esses sentimentos? Meu dia começa as sete, é sempre assim. Mas hoje foi diferente. Um café amargo e uma torrada, estou atrasada. Pouco importa, afinal, é hoje. Nada está certo, mas ninguém acha o erro. Ainda é cedo, mas estou atrasada. A cama desarrumada, o pijama no chão do quarto, não tenho tempo, organizo quando voltar.
A rua ainda deserta, o carro na garagem, leio o jornal mais tarde. As árvores à frente balançam com o vento da madrugada fria. Um turbilhão de pensamentos invade minha mente. Ainda não sei o que fazer. Até ontem, esperava por esse dia como se fosse o mais importante de toda a minha existência, no entanto, agora, queria não estar vivendo esse momento. A lembrança do passado, agora no presente momento, todas as alegrias, mas também o final sofrido. Final!? Não foi um final, talvez agora termine. Não deve acabar assim, depois de tanto tempo. Pode não ser um fim, pode ser um começo, ou melhor, recomeço.
Preciso me acalmar, tenho que dirigir. Liguei o carro, mas não consigo tirá-lo da garagem. Preciso me acalmar. Minhas mãos tremem, todo o meu corpo treme. Um sonho, uma realidade, talvez ainda, apenas um sonho. A distância por tanto tempo esteve entre nós, agora tão perto, parece maior. Preciso me acalmar. O caminho é curto, ao mesmo tempo interminável. A estrada ainda solitária. A lembrança dele em minha mente. E se ele mudou? Ou se eu mudei? Talvez não sejamos os mesmos. Cinco anos é muito tempo. Não vejo nada na minha frente, nem meu futuro.
Tínhamos só dezesseis anos. Éramos jovens. Esses pensamentos em minha mente. Meu coração pulsa forte. Estou suando. Está frio. Ainda sinto o calor de seus lábios. E a neblina cada vez mais alta. Dirijo com toda a velocidade que posso. Preciso vê-lo novamente. Um ano juntos. Separação. O medo invade meu corpo. Apenas um telefonema, apenas por trinta segundos escutei sua voz. E hoje, o reencontro tão desejado. Suas fotos nunca saíram do porta-retrato. Seu rosto nunca saiu da minha cabeça. Essas imagens me perseguem.
O baile, a praia, o cinema, cada momento passa como se fosse o filme do nosso amor. Como se fossem os únicos momentos de felicidade que já tive. Ele nunca me escreveu. A mudança de sua família mudou também minha vida. Agora dirijo em direção ao meu futuro. Se eu possuir um. Minhas mãos estão geladas. Preciso me acalmar. A neblina aumenta. Meu coração acelera cada vez mais.
Algo está errado. Nada vejo. Apenas um barulho. Mal consigo fazer a curva. Não! Um caminhão em minha direção. Não consigo desviar. Preciso chegar ao aeroporto. Ele me espera. Um som ensurdecedor. Logo após, vidros quebrados. Sirenes. Pessoas estão em torno do carro, olhando, assustados. A escuridão.
Naquele dia o quarto não foi arrumado, o jornal não foi lido e ele... Ele a esperou.

Azul bebê - Deh Salves

Ela entrou na sala, uma camisa dele, azul bebê, pouco abotoada, segurando uma xícara de café entre as mãos; ele estava sentado em frente ao computador. De pés descalços, cabelos ainda levemente molhados, ela caminhou até ele, e ficou atrás da cadeira, os olhos amendoados atentos à tela, que reluzia na sala escura. O café estava quente e cheiroso; cheiro de café na sala, cheiro de shampoo nela, cheiro de colônia masculina nele. O teclado fazia música sob os dedos finos dele; dedos finos dele no teclado, dedos brancos dela na xícara, dedos de um entrelaçados nos dedos do outro. A tela do computador brilhava apática; apática a luz da tela, mágicos os olhos dela, apaixonados os olhos dele. O tapete da sala estava macio; macio o tapete bordô com bege, mais macia a pele dela, mais suave o toque dele. A janela deixava entrar a brisa fresca; fresca a brisa da noite de outono, quente o hálito dele, incendiante o beijo dela.
Sobre o sofá a camisa dele, azul bebê, desabotoada, e a xícara de café sobre o vidro da mesinha de centro. Atento, ele caminhou até ela, atrás da cadeira, tirou-lhe os pés descalços do chão, e os cabelos, ainda levemente molhados, reluziram à luz dos olhos dele, na sala escura. Nele, quente e cheiroso, cheiro de colônia masculina, que se misturava aos cheiro de shampoo, nela; cheiro de café na sala. Sob o comando da música, que entrelaçava a xícara, o teclado, os dedos de um e de outro, os dedos finos dele faziam nos dedos dela teclado brando. O computador de tela apática, tela de luz apática junto da mágica dos olhos dele na paixão dos olhos dela. No tapete bordô-macio com bege, o toque mais suave dela, na pele dele, o tapete mais macio. Brisa da quente noite de outono a entrar a janela, o beijo dele incendiante, o hálito dela, brisa.
Amêndoas musicais, dedos que reluzem ao cheiro bordô da janela, café macio que se entrelaça fino à luz, teclado begemente apaixonado pela noite de tapete masculino, mágica música dos dedos de shampoo nos beijos descalços do incêndio molhado.
Inexplicáveis, inesquecíveis...